quinta-feira, junho 08, 2017

O cidadão ilustre, de Mariano Cohn e Gastón Duprat ***

A sequência inicial de “O cidadão ilustre” (2016), em que o escritor Daniel Mantovani (Oscar Martínez) recebe o Nobel da literatura, pauta o grande dilema existencial do roteiro do filme dirigido por Mariano Cohn e Gastón Duprat – a do real papel da arte no mundo contemporâneo. O texto raivoso e amargurado do discurso proferido pelo protagonista durante o evento evidencia o medo de uma estagnação criativa e da incapacidade de sua escrita gerar algum incômodo ao status quo vigente. Assim, quando a narrativa passa a se concentrar no ambiente da cidadezinha no interior da Argentina onde Mantovani nasceu, e que serviu de maior fonte de inspiração para as histórias de seus livros, a produção ganha um tom de fábula perversa, por vezes até kafkaniana na sua caracterização de pesadelo, em que o personagem principal, inicialmente convidado pela prefeitura local para ser homenageado, se embrenha em um crescente vórtice de sentimentos nada nobres por parte dos habitantes da cidade (mascarados por um hipócrita manto de cordialidade): invejas, ressentimentos, obscurantismo, mesquinharias, repressão moral e interesses escusos das oligarquias locais. Diante de tais situações, Mantovani é contraditório e ambíguo em suas ações e sentimentos, mas de tais elementos fica tangível um humanismo que se contrapõe ferozmente contra o opressor patriarcalismo político-cultural da sua aparentemente pacata cidade natal. Ainda que por vezes “O cidadão ilustre” caia em algumas caracterizações caricatas e simplistas e que o seu formato seja o de uma comédia dramática convencional, a obra de Cohn e Duprat tem momentos instigantes e memoráveis pela forma com que expõe a condição entre o ridículo e o assustador da sociedade contemporânea, reafirmando a função da arte e da cultura em desafiar tais aspectos deletérios da humanidade.

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