sexta-feira, fevereiro 26, 2016

O cheiro da gente, de Larry Clark ****

Mesmo estando longe de ser uma unanimidade em termos de reconhecimento artístico, é inegável que “Kids” (1995) foi uma obra marcante em mais de um aspecto, ao lançar as bases estéticas e temáticas nas quais o diretor Larry Clark e seus colaboradores se aprofundaram em obras posteriores – vide Harmony Korine em “Gummo” (1997) e “Spring Breakers” (2012). A abordagem conceitual crua sobre uma juventude mergulhada em hedonismo e vazio existencial ganhou admiradores e seguidores confessos, mas também veio acompanhada de uma legião de detratores. Enquanto havia uma ala de crítica e público que se encantava por uma certa poesia visceral em meio aquela sordidez visual e degradação comportamental, também existia setores que viam em Clark uma espécie de voyeur e marqueteiro a se deliciar com a violência e a sexualidade brutal de seus jovens belos e malditos. A ambiguidade tanto na concepção artística dos seus filmes que se sucederam (“Bully”, “Ken Park”) quanto nessa recepção ao seu trabalho permaneceu ao longo dos anos.

O amplo espectro de elogios que “O cheiro da gente” (2014) vem recebendo pode até sugerir que houve alguma mudança nessa dubiedade que marcou de forma constante a carreira de Clark. A verdade, entretanto, é que a impressão efetiva é de que o diretor se embrenhou ainda mais nas suas contradições conceituais habituais, reforçando o seu caráter de cronista das delícias e tormentos das crianças e adolescentes pequeno burgueses da sociedade ocidental contemporânea. A diferença é que nessa empreitada mais recente existe um acabamento formal extremamente refinado, mas que em nenhum momento retira o traço visceral e autoral que sempre foi inerente à filmografia de Clark. Pelo contrário: a sofisticação plástica de “O cheiro da gente” torna o seu impacto sensorial ainda mais potente na capacidade de provocar nas plateias aquela reação mista entre o encantamento e a perturbação. Esse pendor para o requinte estético vem acompanhado de uma visão de mundo ainda mais nebulosa e desafiadora na forma com que expõe os conflitos e dilemas de seus jovens personagens. Tanto que o próprio Clark se coloca na trama como uma figura ficcional, um mendigo asqueroso que ora serve como diversão sádica para a garotada ora é uma espécie de confidente e parceiro de diversão de seus algozes. Ou seja, um alter ego mais que adequado para o cineasta...

É bem provável que o fato da trama de “O cheiro da gente” se desenvolver em Paris tenha sido uma influência decisiva para esse esteticismo renovado de Clark. É engraçado, entretanto, que as referências artísticas que mais vem à mente ao longo da projeção do filme sejam algumas obras fundamentais da época de ouro do cinema italiano (anos 50, 60 e 70). O tom operístico e trágico de algumas sequências remete aos filmes da fase “alemã” de Luchino Visconti (“Os deuses malditos”, “Ludwig”, “Morte em Veneza”), na sua combinação de homossexualidade, incesto, decadência e morte. A encenação picaresca e realista e a profusão de cenas sexo lembram muito daquele Pasolini da “Trilogia da vida”. Algumas cenas de atmosfera onírica e chapada, junto com a caracterização algo misteriosa de efebo prostituto Math (Lukas Ionesco), parecem habitar o mesmo universo do Fellini delirante de “Satyricon” (1969). E de forma sutil, perpassa no roteiro um forte subtexto de revolta e desprezo contra a ordem vigente de adultos hipócritas que evoca a ácida rebeldia de “Zabriskie Point” (1970). Tais influências e referências não fazem da narrativa de “O cheiro da gente” uma mera colcha de retalhos com pretensões pseudointelectuais. Elas são incorporadas de maneira muito particular dentro do modus operandi de Clark e se expressam dentro de um registro que varia de forma admirável entre o virulento e o poético.


Talvez alguns críticos e “formadores de opinião” fiquem inconformados com a recusa de Clark em fazer um retrato sociológico mais claro dessa juventude contemporânea dos grandes centros urbanos. Mas é justamente na imprecisão de seu “discurso”, aliado à criatividade de virtuosismo estético, que “O cheiro da gente” se mostra em perfeita sintonia existencial e artística com os tempos confusos que vivemos, colocando-se no rol das produções cinematográficas dessa década que fizeram registros contundentes e memoráveis da juventude como “Depois de maio” (2012) e “Nós somos as melhores” (2013).

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