quarta-feira, novembro 24, 2010

Amantes, de James Gray ****


Numa das entrevistas que concedeu para divulgar o magnífico “A Época da Inocência” (1993), Martin Scorsese, ao ser questionado sobre o fato de estar fazendo um filme de época depois de tantas obras sobre a máfia, colocou que aquele era um filme de época feito sob a lógica de um filme de gângsteres. Essa história me veio à mente ao assistir a “Amantes” (2008): apesar de aparentemente pertencer ao gênero drama romântico, o filme é desenvolvido pelo diretor James Gray, mais afeito ao universo das produções policiais (vide o extraordinário “Os Donos da Noite”, de 2007), como se fosse um tenso e seco thriller, algo como um “O Poderoso Chefão” de tons intimistas.

A trama de “Amantes”, na sua superfície, é simples e quase banal: Leonard (Joaquin Phoenix), rapaz perturbado e com tendências suicidas, apaixona-se por Michelle (Gwyneth Paltrow), sua transtornada vizinha, ao mesmo tempo que começa namorar Sandra (Vinessa Shaw), a pacata e centrada filha do futuro sócio do seu pai. A simplicidade dessa premissa, entretanto, é ilusória. “Amantes” caminha por uma trilha bem mais tortuosa. A polarização que se faz entre as duas mulheres não é entre a maniqueísta divisão de quem é a malvada e quem é a boazinha. Michelle, amante de um poderoso e casado advogado (Elias Koteas), pouco oferece a Leonard: não o ama, mas constantemente o procura como apoio moral. O que atrai Leonard para o caótico mundo de Michelle não é apenas beleza ou sexo: numa sociedade que lhe exige adequação e que tome os seus remédios, ele vê na vizinha uma alma gêmea igualmente confusa. Já Sandra é carinhosa e compreensiva em relação ao passado conturbado do namorado. Sua figura tem um forte elemento simbólico ao se apresentar como praticamente uma extensão da pessoa da mãe (Isabela Rossellini) do rapaz (uma das cenas finais na praia, em que o par de luvas caídas na água traz a Leonard a lembrança de Sandra, é a síntese magnífica dessa simbologia). Uma afirmação mais de uma vez é proferida em relação à Sandra: vários rapazes correm atrás dela desejando namoro... Ela representa segurança emocional, afetiva e até mesmo financeira. Mas o que deveria ser um alento acaba sendo apenas mais um tormento a sufocar Leonard.

O filme não oferece concessões a Leonard e nem ao espectador. Temos a sensação de saber desde o começo da história que o envolvimento do protagonista com Michelle é pura encrenca para ele. Gray disseca o que poderia haver de romântico e nos joga a carcaça da realidade. O que nos comove na sequência em que Leonard se declara para Michelle não é uma improvável redenção pelo amor romântico, mas sim o desnudamento emocional do rapaz, mostrando-se em toda a sua fragilidade e confusão psicológicas.

James Gray oferece para esse pequeno épico de desilusão amorosa um estilo formal de talhe clássico. A edição oscila de forma admirável entre a serenidade quase contemplativa e o dinamismo objetivo e vibrante, como se fosse uma metáfora para o comportamento bipolar de Leonard. As sequências envolvendo o passeio noturno dele, Michelle e suas amigas são exemplares nesse sentido, das divertidas brincadeiras entre os personagens durante o trajeto no carro até a sensual e febril festa numa boate, evocando a memorável abertura de “Os Donos da Noite”. Igualmente representativas dessa precisa arquitetura narrativa da montagem de “Amantes” são as cenas em que Leonard e Michelle se comunicam dos seus apartamentos tanto pelos seus celulares quanto gritando pelas janelas (ou, às vezes, simplesmente se olhando).

A fotografia também é um capítulo à parte. Tanto as tomadas externas quanto as internas são banhadas por tons escuros e atmosféricos, como se sublinhassem os sentimentos de desconforto e angústia de Leonard e também o comportamento errático e imprevisível de Michelle. O breu de certas seqüências é um elemento dramático que dá um sentido fundamental para algumas das principais passagens de “Amantes”. O ápice dessa inspirada utilização sombria das cores é a cena em que aos poucos Michelle sai das sombras e o seu rosto vai revelando a intenção de não ficar mais com Leonard.

E não há como esquecer também das fantásticas sequências realizadas no telhado do prédio onde moram Michelle e Leonard: geralmente filmadas sob a iluminação cinzenta dos finais de tarde e com enquadramentos altamente expressivos, tais momentos guardam alguns dos instantes mais cruciais e sombriamente belos do filme, tanto pelo impacto das imagens quanto pelos diálogos reveladores dos personagens.

Muito tem se destacado nas matérias sobre “Amantes” a antológica interpretação de Joaquin Phoenix, sendo que realmente não há como se impressionar. Sua atuação é tão cheia de intensidade e sutilezas que fazem de Leonard alguém incrivelmente crível e humano. Mas seria injusto não destacar também o ótimo trabalho de Gwyneth Paltrow. Confesso que nunca fui muito entusiasta da atriz, mas aqui ela consegue sair daquelas gastas e cansadas caracterizações unidimensionais de loirinhas frágeis e adoráveis, fazendo de Michelle uma criatura que tanto vai do apaixonante quanto ao irritante.

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