terça-feira, novembro 23, 2010

Abraços Partidos, de Pedro Almodovar ***1/2


Em linhas gerais, a carreira do cineasta espanhol Pedro Almodóvar se divide em três fases. Na primeira, que começa em “Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón” (1980) e vai até “Kika” (1993), o que fica em primeiro plano é o tom anárquico, com o diretor satirizando impiedosamente vários aspectos da sociedade espanhola, principalmente aqueles herdados da era franquista: o conservadorismo, a religiosidade obscurantista, a repressão sexual. Os roteiros dos filmes eram rocambolescos e exagerados, mas traziam uma estranha combinação de humor escrachado e dramaticidade. Além disso, sua narrativa cinematográfica foi sendo aprimorada a cada produção. Na segunda fase, Almodóvar enveredou para uma criativa recriação do gênero clássico de melodramas, sempre permeada por sutis e amargos toques cômicos. Nessa linha, gerou três obras memoráveis – “A Flor do Meu Segredo” (1995), “Carne Trêmula” (1997) e “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999). Por fim, a terceira fase, que se inicia em “Fale Com Ela” (2002) e se desdobra até hoje, buscou uma espécie de síntese das fases anteriores, além de estabelecer o gosto por uma linguagem cada vez mais referencial e tomando o próprio cinema como tema em si. E é justamente aí que se enquadra “Abraços Partidos” (2009).

Nessa produção mais recente, fica ainda mais escancarada a tendência do cineasta em focar o cinema quase como personagem. Ao tomar como protagonista o diretor e roteirista Mateo Blanco (Lluís Homar), Almodóvar tem a premissa ideal para fazer uma série de citações e homenagens cinéfilas de forma ampla, indo desde daquilo que é considerado como parte do topo do cinema como arte (o clássico italiano “Viagem à Itália” de Roberto Rossellini) até a um gênero menosprezado como o terror (é antológico o diálogo entre Mateo e o seu assistente em que eles criam uma estapafúrdia trama envolvendo vampiros que se aproveitam de doadores de sangue). Por esse viés, passa também a figura de Lena (Penélope Cruz), que na sua caracterização traz evocações a divas como Marilyn Monroe, Audrey Hepburn, Sophia Loren e Catherine Deneuve – essa última em cenas que remetem à obra-prima de Buñuel, “A Bela da Tarde” (1967). Almodóvar aproveita, inclusive, para fazer uma auto-homenagem no “filme dentro do filme” que há em “Abraços Partidos”, uma espécie de releitura de “Mulheres À Beira de Um Ataque de Nervos” (1988).

Almodóvar condensa habilmente esse mar de citações e seqüências de metalinguagem em uma trama que remete a dois gêneros clássicos – o policial noir e o melodrama típico das produções da Hollywood dos anos 40 e 50. Nesse sentido, lembra bastante o que ele já havia feito no excelente “Má Educação” (2004). Em “Abraços Partidos”, a narrativa em vários momentos adota uma linha investigativa, em que passado e presente se alternam intensamente, visando descortinar os mistérios que rondam os personagens. É uma trama, entretanto, que não é para ser levada muito a sério – é nesse ponto que se revela a veia cômica do cineasta. Não há maiores sutilezas nessa recriação do noir e do melodrama. Almódovar faz a sua reciclagem escolhendo as vias do exagerado e do paródico, desconcertando o espectador com essa falsa dramaticidade. O que é uma virtude do cineasta se revela, entretanto, como ponto fraco de “Abraços Partidos” em algumas oportunidades – há seqüências em que Almodóvar parece ele mesmo acreditar na seriedade das situações que criou. Nesse sentido, o momento em que Blanca (Judit Garcia) faz as “revelações finais” para Mateo é particularmente enfadonho, digno de algumas rasteiras novelas televisivas.

“Abraços Partidos” consolida um momento na carreira de Almodóvar em que ele não está mais disposto a se mostrar como inovador ou iconoclasta. Assim como Tarantino, está mais interessado na constituição de um universo personalista, em que seus filmes sempre traduzirão as suas obsessões estéticas e temáticas, mesmo que possa a vir se repetir, eventualmente (o que não é necessariamente um defeito). No mundo cinematográfico de hoje, poucos têm o talento suficiente para poder se dar a esse luxo.

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