quinta-feira, dezembro 02, 2010

José & Pilar, de Miguel Gonçalves Alves ***


Pode-se perceber em “José & Pilar” (2010) uma certa intenção laudatória em relação à figura do escritor português José Saramago e de sua esposa espanhola Pilar. Basicamente, o documentário mostra os últimos anos de vida do autor, envolvido em inúmeras palestras e intermináveis sessões de autógrafos, além da elaboração do seu romance derradeiro (“Viagem do Elefante”) e a internação por problemas de saúde, e sempre assessorado/pajeado por Pilar. Ressalta-se o grande artista e o humanista bastante atuante, também o ateu racionalista questionador dos dogmas católicos (o que lhe arruma um boicote do povo e governo portugueses). Apesar desse tom que beira a louvação, entretanto, “José & Pilar” consegue extrair contradição e conflitos dentro de tal temática. É perturbador, por exemplo, o contraste entre o entre o brilhantismo intelectual e artístico de Saramago e a sua dependência afetiva e profissional de Pilar. A ostensiva evidência da fragilidade de sua saúde também faz refletir sobre a real necessidade do escritor em fazer constantes viagens de divulgação de sua obra e ideias: seria para divulgação de seus princípios éticos e culturais, pelo desejo de estar em constante movimento ou simplesmente para vender mais livros? O sentimento de ambiguidade também está presente na forma como os apreciadores de Saramago são retratados – se por um lado se sente uma real admiração pelo homem das letras por parte dos mesmos, por outro há uma ironia ao se retratar uma tietagem estéril (o que é aquele rapaz brasileiro pedindo para o escritor desenhar um hipopótamo na dedicatória?). E por mais que Pilar seja o anjo da guarda de seu marido, não há como se irritar com a sua postura petulante e "mala" em alguns momentos. No mais, o diretor Miguel Gonçalves Mendes oferece uma moldura formal elegante para “José & Pilar”, compilando essa gama considerável de registros audiovisuais diversos em uma montagem de ritmo contemplativo que raramente cai no enfadonho. De bônus, traz imagens marcantes das paisagens enevoadas de Lanzarote, local que parece a tradução telúrica perfeita para a escrita densa de Saramago.

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