O que há em “Fausto” (2011) não é somente mais uma relação
entre cinema e literatura. O que o diretor russo Alexander Sokurov propõe é
mais ambicioso. Além de recriar o livro de Goethe, o cineasta disseca a própria
lenda que deu origem à obra literária e a transmuta para a sua visão
particular. O texto do filme, de tom poético e anti-naturalista, recebe um
tratamento formal que rompe com o linear e a narrativa convencional. Tudo soa
intrincado, enigmático e repleto de um subtexto de caráter simbólico. Assim,
ocorre uma união em perfeita sintonia artística entre a poesia de Goethe e a
insólita e particular estética de Sokurov. As angústias existenciais e
questionamentos metafísicos do personagem-título são envolvidos numa atmosfera
que parte do realismo e envereda pelos caminhos do delírio e do onírico. A
reconstituição da época medieval recebe uma direção de arte estilizada que não
se vincula necessariamente a um ideal “verossímil”, mas a um conceito que
delimita aquele período histórico: sordidez, sujeira, obscurantismo, violência.
Acentuando esse conceito de uma concepção formal difusa e estranha, a direção
de fotografia apresenta ideias e execução fenomenais, indo de planos-sequência
estonteante (a começar pelo sensacional vôo da câmera no plano de abertura) até
uma iluminação de tons pálidos e esmaecidos que caracterizam uma ambientação de
forte conotação fantástica. Coordenando esse
formalismo apurado, Sokurov apresenta uma encenação rigorosa e criativa – é notável
a forma com que se desenvolve a caracterização das situações e personagens.
Nesse último aspecto, figuras como o arredio e amedrontado Fausto (Johannes
Zeiler), a angelical Gretchen (Isolda Dychauc) e o insidioso demônio (Anton Adasinskiy,
em interpretação genialmente grotesca) ganham uma dimensão antológica pelas mãos
de Sokurov e se insinuam no nosso imaginário.
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