quinta-feira, dezembro 29, 2016

Belos sonhos, de Marco Bellocchio ****

A narrativa em “Belos sonhos” (2016) gira em torno de uma ideia de trama aparentemente até bem simples: a maneira como a precoce morte da mãe do protagonista Massimo (Valerio Mastandrea), quando ele ainda era criança, marcou o restante de sua vida. Só que com o velho mestre italiano Marco Bellocchio as coisas nunca são tão simples, com o cineasta convertendo tal história numa espécie de parábola moral de subtexto político-existencial fascinante. O fluxo temporal da trama corresponde a uma espécie de linha de memória marcada por traumas e esquecimentos. A sutil desconstrução da linearidade cronológica acentua a complexidade dos sentimentos e sensações que afloram com crueza e mesmo alguma ironia ao longo da narrativa. O passar dos anos para Massimo não corresponde exatamente a um amadurecimento do personagem, e nesse conceito perpassa uma síntese entre o sentimental e o intelectual a retratar tanto os aspectos intimistas quanto o caráter sócio-cultural do modelo do macho ocidental – nesse sentido, é brilhante a forma com que Bellocchio disseca na trajetória pessoal e profissional de Massimo seu envolvimento com o futebol, a política e o poder econômico, em que tais símbolos de masculinidade e prestígio social acabam não conseguindo esconder uma fragilidade inerente ao personagem. O registro estético para tal saga pessoal oscila com discrição entre a ambientação levemente estilizada do passado e a atmosfera de melodrama clássico do presente, em que as convenções do gênero são adulteradas com uma doce ironia perversa. Bellocchio “engana” com brilhante engenhosidade o espectador em seus truques formais-temáticos – em determinados momentos, ele insinua que a narrativa cairá em uma espécie de dramalhão novelesco edificante para logo depois revelar uma verve cáustica de encenação e texto. Dentro desse particular universo artístico, Bellocchio evidencia a sua indelével marca autoral e de lambuja faz um contundente e emotivo retrato psico-político da sociedade ocidental das últimas décadas.

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