quarta-feira, maio 14, 2014

Os dias com ele, de Maria Clara Escobar ***

Longas tomadas fixa e um homem falando sem parar. Por vezes, alguns planos focando alguns atos rotineiros desse protagonista. Em outros momentos, a cineasta e o homem, que são pai e filha, discutem sobre o objetivo da produção em questão, sobre as escolhas criativas da diretora. Numa descrição como essa, poderia restar uma fatídica dúvida: mas, afinal, isso pode ser considerado cinema? O documentário “Os dias com ele” (2012) trafega nessa fronteira tênue entre o pessoal e o universal, em que o subjetivismo da temática de uma filha tentando descobrir obscuridades e objetivos na vida do pai acaba ganhando uma dimensão mais ampla ao se saber que esse progenitor já foi perseguido político no tempo da ditadura militar no Brasil, sendo preso e torturado, e hoje em dia vive um tanto recluso com a família em Portugal. A concepção formal espartana da obra e a disposição de pai e filha em se exporem cruamente geram um filme de encanto estranho – um dos grandes méritos da diretora Maria Clara Escobar está na capacidade de criar uma atmosfera sóbria e também de casualidade, em que a naturalidade com que o seu pai faz confissões ou simplesmente se mostra ranzinza e pequenos atos instintivos ou aleatórios (como os gatos que eventualmente se metem nos planos, quase como observadores curiosos) compõem uma estrutura narrativa sólida e que dá a impressão de se desenrolar num universo à parte, em que a solidão e desencanto daquele homem refletem também uma importante parte existencial de uma nação que se perdeu pelos desmandos e brutalidades de um regime ditatorial. O desejo da filha de saber mais sobre o pai também se converte sutilmente no desejo de uma geração em tirar das brumas dos passados os segredos obscuros de um país.

Nenhum comentário: