quinta-feira, novembro 27, 2014

Riocorrente, de Paulo Sacramento ***1/2




Se Jogo das decapitações (2013) abusa de uma verborragia atordoante, Riocorrente (2013) prefere se insinuar pelos silêncio de seus personagens. Assim como no filme de Bianchi, pode-se perceber na obra de Paulo Sacramento que o desconforto, a violência e a tensão são latentes, mas os principais personagens da trama não verbalizam suas angústias e revoltas. Preferem descontar suas frustrações e desconfortos através de sexo, porres, discussões, passeios sem rumo pelas ruas desoladas de São Paulo, pequenos crimes. Na superfície, os conflitos intimistas desses indivíduos escondem uma leitura política bastante arguta – o mecânico e ladrão de carros Carlos (Lee Taylor), o jornalista e historiador Marcelo (Roberto Audio), a socialite Renata (Simone Iliescu) e o menino de rua Exu (Vinicius do Anjos) carregam uma conotação simbólica na constituição de suas figuras, representando diferentes classes sociais, comportamentos e visões de mundo que convivem aos trancos e barrancos na mesma sociedade. Essa estruturação da trama baseado nos conflitos existenciais de cada um desses personagens lembra muito o mote principal do extraordinário romance Contraponto (1923) de Aldous Huxley, em que a exposição das visões ideológicas e filosóficas dos personagens era o eixo principal do ritmo narrativo da obra. Essa tendência para a simbologia em Riocorrente não se limita apenas na caracterização de seus principais personagens, sendo que Sacramento pontua de forma recorrente no filme seqüências marcadas por sutis trucagens evocando fogo e catarse, como no momento em que Carlos se imagina com um coquetel molotov nas mãos ou naquele do onirismo desconcertante de um Rio Tietê se incendiando.

É curioso observar ainda que tanto O jogo das decapitações quanto Riocorrente apresentam momentos em que a música adquire uma conotação de redenção em meio a narrativas marcadas pela temática da turbulência social e existencial. Na conclusão do filme de Bianchi, há um número musical em que um grupo cultural voluntário toca e canta uma versão apaixonada da panfletária Eu vivo num tempo de guerra, emblemático tema de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, perante uma plateia de garotos pobres de olhar desconfiado, enquanto a obra de Sacramento traz o misto de rock e free jazz da Patife Band e o canto dilacerado do velho mutante Arnaldo Baptista no seu clássico Te amo, podes crer servindo como válvula de escape emocional para as tensões atávicas de alguns personagens. No meio do clima de pessimismo e fúria que impera nas duas produções, é como se os dois cineastas ainda vissem alguma possibilidade de esperança na cultura e na sensibilidade, que tanto podem se manifestar na música como nas suas respectivas obras cinematográficas.

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