segunda-feira, outubro 18, 2010

Dzi Croquettes, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez ***1/2


O panorama dos documentários brasileiros tem se mostrado com uma gama razoavelmente ampla de direções estéticas. Nesse sentido, o caminho mais radical apresentado é o de Eduardo Coutinho, que em seus filmes mais recentes questiona os próprios fundamentos do cinema documental ao deixar evidente que depoimentos ditos espontâneos podem trazer uma carga de interpretação por parte de quem os profere, assim como o encadeamento de cenas revela uma certa manipulação do olhar no sentido de trazer uma visão pessoal de seu realizador. Por outro lado, há uma tendência artística em uma outra linha de produções documentais cujo enfoque é muito mais no objeto temático do que na sua linguagem formal. Essa intenção de privilegiar os fatos registrados vem do desejo de seus realizadores em trazer à tona uma série de episódios e personagens de caráter histórico importante que, por motivos diversos, encontram-se na obscuridade perante a maioria do público.

Diante desse quadro, “Dzi Croquettes” (2009) apresenta opções que revelam uma aparente e saudável esquizofrenia. Em um primeiro momento, os diretores Tatiana Issa e Raphael Alvarez visam expor a trajetória dos biografados do título, um grupo teatral surgido na década de 1970, composto por homem que se travestiam de mulher em números cômicos e musicais, que causou considerável alvoroço no cenário cultural da época. Sua influência foi tão impactante que acabou dando origem direta a outras manifestações artísticas que se incrustaram no imaginário popular: o conjunto vocal As Frenéticas, o grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, o programa televisivo cômico TV Pirata. Os realizadores tiveram acesso a um vasto material de arquivo audiovisual com apresentações dos Dzi Croquettes e depoimentos de seus integrantes, além de entrevistas com admiradores e discípulos. O trabalho de edição combina todos esses elementos com precisão, sabendo extrair a potencialidade dos mesmos. Há uma notável seqüência em particular, por exemplo, em que se fundem sombrias imagens de reuniões e desfiles militares com tomadas de apresentações dos Dzi Croquettes, contrastando de forma desconcertante as concepções libertárias destes últimos com o ambiente obscurantista típico da época da ditadura militar.

O enfoque de “Dzi Croquettes” ao expor tais fatos, entretanto, não é meramente didático. No cerne do documentário, há também um viés de subjetividade na visão dos fatos apresentados. Tatiana Issa teve um envolvimento pessoal com o grupo – seu pai trabalhou como iluminador em alguns dos espetáculos dos Croquettes, com Issa, ainda criança, presenciando ensaios e a rotina deles. A diretora revela que, pelo seu olhar infantil, via o grupo como um bando de “palhacinhos”. Sua busca pela história dos Croquettes também acaba se revelando como um mal dissimulado resgate da memória do pai. Ao trazer a sua impressão de inocência sobre os Croquettes, Tatiana Issa causa uma contradição perturbadora com o relato biográfico cru de algumas passagens do documentário: sexo, brigas, AIDS, assassinatos, decadência. Esse aspecto de pessoalidade na abordagem da diretora é o real ponto de transcendência em “Dzi Croquettes”, quando realidade e percepção íntima se confrontam e caminham para uma terceira via que beira o indefinível e que põe em cheque a própria “função” do gênero documentário.

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