quarta-feira, novembro 26, 2014

O jogo das decapitações, de Sérgio Bianchi ****


Sérgio Bianchi é um cineasta que tem um apreço especial por uma temática singular – o mal-estar existencial do homem moderno. Seus filmes têm como conteúdo fundamental a sensação de desconforto do brasileiro classe média com tudo aquilo que foge dos seus padrões de comportamento e moralidade. Cronicamente inviável (2000) e Os inquilinos (2009) mostram as contradições, preconceitos e hipocrisias oriundas das diferenças de classes sociais, enquanto Quanto vale ou é por quilo? (2005) apresenta uma das visões mais cruas e sarcásticas já realizadas no cinema nacional sobre o racismo. Vale lembrar, entretanto, que na cinematografia de Bianchi as dicotomias que se apresentam não implicam necessariamente numa visão maniqueísta. Pobres, marginais e excluídos não se limitam a um papel de vítima – eles têm um papel ativo no seu destino. Em O jogo das decapitações (2013), todos esses conteúdos turbulentos afloram com a virulência habitual do cineasta. Na realidade, há até uma expansão conceitual no universo provocador de Maldita coincidência (1979), para ilustrar o legado artístico maldito de Jairo Mendes. No final das contas, esse confronto entre a obra mais recente e um dos primeiros trabalhos de Bianchi também serve para traçar a unidade artístico-existencial da carreira do cineasta e também para a confrontação brutal entre duas épocas distintas.Bianchi, que não se furta, inclusive, a questionar e ironizar questões muito caras para a esquerda como a concessão de indenizações e pensões para perseguidos pela ditadura militar. Isso não quer dizer, todavia, que Bianchi se apresente como um recém convertido a novo conservador, reacionário ou qualquer coisa que o valha. Ele age mais como um cronista distante e amargurado da decadência social e moral de uma nação. Para isso, ele toma por protagonista Leandro (Fernando Alves Pinto) um confuso rapaz de classe média, filho de uma ex-guerrilheira e de Jairo Mendes (Paulo César Pereio), um enigmático artista performático. Leandro também é estudante pós-graduando em vias de ser “jubilado” e que vive numa eterna pesquisa acadêmica não muito bem delineada e definida sobre a ditadura militar. Bianchi dá a impressão que o seu olhar gravita entre a perspectiva atônita de Leandro diante de uma realidade cada vez mais fraturada pela violência e intolerância, e a fúria niilista e sarcástica de Rafael (Silvio Guindane), colega de Leandro que desdenha de ideologias e das ortodoxias sócio-políticas. Mas mesmo para um personagem como Rafael não há uma clareza – suas descrenças e pretensa lucidez teriam um caráter libertário ou apenas seriam motivos para o estímulo de mais preconceitos? A maturidade artística de Bianchi faz com essa babel de fatos, referências e simbologias sejam filtradas numa narrativa coesa e contundente. Os principais truques formais do cineasta recebem um acabamento ainda mais refinado, fazendo com que encenação realista, toques documentais, diálogos discursivos antinaturalistas e sequências delirantes convivam em estranha harmonia que ganha um sentido singular no universo de Bianchi, tanto que ele se permite a se auto-referencia ao usar trechos do seu primeiro longa-metragem,

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

Um filme que faz um belo retrato sobre o nosso país de hoje e ontem.