A relação do diretor alemão Wim Wenders com o “cinema
verdade” já vem de longos anos. Na realidade, nem daria para fazer uma
distinção tão nítida entre os documentários que dirigiu e os seus filmes de
ficção, pois ambas as linhas de narrativas sempre trouxeram sua forte marca
autoral bem como suas obsessões temáticas. Ou seja, para Wenders o gênero
documental não se limitaria somente à objetividade dos fatos, ao simples
registro verídico das coisas do mundo. Importaria também um olhar subjetivo
sobre os indivíduos e situações focados em sua lente, um certo caráter
impressionista nessa visão. Assim, é natural que como conteúdo de suas
produções houvesse pessoas e assuntos relacionados ao seu interesse pessoal,
fazendo com que seus documentários versassem sobre cinema (Nick’s Movie, O quarto 666, Tokyo Ga), música (Buena Vista Social Club, The soul of a man), dança (Pina) e até mesmo moda (A identidade de nós mesmos). Essa
tendência personalista, de buscar uma vinculação existencial e artística com o
seu “objeto” fílmico, já fica logo evidente no início de O sal da terra (2014), quando o próprio Wenders, uma das vozes narradoras
da obra, fala que na sua mesa de trabalho tem uma fotografia tirada por
Sebastião Salgado de uma africana miserável e cega. Nesse momento, o cineasta
ressalta o quanto aquele instantâneo o comove e também o quanto admira Salgado.
De certa forma, dá até para dizer que há algumas conexões
óbvias entre Salgado e Wenders. Para começar, a preferência do fotógrafo pelo
registro preto e branco encontra ressonância na própria filmografia do
cineasta, cujos alguns de seus melhores filmes apresentaram uma opção pela
fotografia não colorida (No decorrer do
tempo, O Estado das coisas, a primeira metade de Asas do desejo). Além disso, o fotógrafo em seus mais conhecidos
álbuns preferiu retratar aqueles que se encontram à margem da sociedade
(trabalhadores informais, refugiados de guerra, nômades, povos nativos, órfãos,
miseráveis), enquanto Wenders trouxe em boa parte de seus filmes personagens em
processo de ruptura com o mundo que os cercam, verdadeiros outsiders (ainda que
por razões diversas dos indivíduos presentes nas fotos de Salgado). Essa
sintonia entre Wenders e Salgado por vezes se manifesta de forma intensa e encontra
achados imagéticos interessantes em O
sal da terra. Os momentos em que algumas das principais fotografias de
Salgado se fundem com a imagem do seu rosto e mesmo com sua narração têm um
efeito sensorial marcante. E em se tratando de um filme que tem a imagem capturada
como o principal mote de sua temática, é de se destacar o belo trabalho de
enquadramentos e iluminação que captam algumas nuances visuais realmente
impressionantes, remetendo ao próprio estilo de Salgado fotografar.
Se em termos imagéticos O
sal da terra traz os seus momentos de deslumbre, por outro lado como
narrativa cinematográfica acaba sendo frustrante. Isso porque a estrutura do
seu roteiro obedece a uma linha burocrática e previsível: apresenta de forma
cronológica alguns dos principais fatos da vida de Salgado e traz alguns
detalhes relevantes das viagens que fez ao redor do mundo para colher material
para os seus álbuns. Ou seja, obedece ao mesmo formato de outra obra que já
tinha o fotógrafo como personagem principal, o didático e apenas correto Revelando Sebastião Salgado (2012). É
óbvio que as histórias familiares e das andanças de Salgado pelo globo trazem
uma forte carga humanista e chegam a serem comoventes em determinadas sequências.
É fato também, entretanto, que ao optar por essa formatação Wenders acaba
sacrificando bastante da sua marca autoral. Não há a tensão dramática de Nick’s Movie, o cerebralismo de O quarto 666, a criatividade estética
de The soul of a man e Pina, a sensibilidade à flor da pele de
Buena Vista Social Club. Em O sal da terra os elementos da
contradição e do conflito estão ausentes. Nesse sentido, a presença de Juliano
Ribeiro Salgado, filho de Sebastião, na codireção acaba não passando incólume.
A narrativa, de forma progressiva, vai adquirindo um tom cada vez mais solene,
beirando de maneira equivocada uma atmosfera de beatitude, em que Salgado vai
se convertendo numa espécie de figura santificada. Há uma cena em que Wenders
insinua que filmar o fotógrafo é muito complicado, pois ele tem a
autoconsciência de estar sendo enquadrado pela lente do cineasta e se movimenta
em cena sabendo do efeito que pode causar, dando a impressão de que o próprio
Salgado pode estar conduzindo a narrativa. E é isso que parece acontecer em O sal da terra: o biografado transforma
o documentário na sua hagiografia, realçando seus feitos pessoais, sua
privilegiada visão de mundo e suas iniciativas sociais (como o parque ecológico
criado por ele e sua mulher). Mesmo suas críticas políticas e sociais em
relação às mazelas que afligem as pessoas que fotografa, apesar de bem
intencionadas e sinceras, acabam soando protocolares diante dessa concepção
narrativa destituída de criatividade e vigor. Nesse conjunto de opções
estéticas e temáticas, dá para dizer que em O sal da terra se tem um bom vídeo institucional. Só que se limitar
a uma eficiente peça publicitária acaba sendo muito pouco quando se tem
envolvidos numa produção nomes como Wim Wenders e Sebastião Salgado.
Um comentário:
Um dos melhores filmes desse ano
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