terça-feira, junho 02, 2015

O sal da terra, de Wim Wenders e Juliano Salgado **1/2



A relação do diretor alemão Wim Wenders com o “cinema verdade” já vem de longos anos. Na realidade, nem daria para fazer uma distinção tão nítida entre os documentários que dirigiu e os seus filmes de ficção, pois ambas as linhas de narrativas sempre trouxeram sua forte marca autoral bem como suas obsessões temáticas. Ou seja, para Wenders o gênero documental não se limitaria somente à objetividade dos fatos, ao simples registro verídico das coisas do mundo. Importaria também um olhar subjetivo sobre os indivíduos e situações focados em sua lente, um certo caráter impressionista nessa visão. Assim, é natural que como conteúdo de suas produções houvesse pessoas e assuntos relacionados ao seu interesse pessoal, fazendo com que seus documentários versassem sobre cinema (Nick’s Movie, O quarto 666, Tokyo Ga), música (Buena Vista Social Club, The soul of a man), dança (Pina) e até mesmo moda (A identidade de nós mesmos). Essa tendência personalista, de buscar uma vinculação existencial e artística com o seu “objeto” fílmico, já fica logo evidente no início de O sal da terra (2014), quando o próprio Wenders, uma das vozes narradoras da obra, fala que na sua mesa de trabalho tem uma fotografia tirada por Sebastião Salgado de uma africana miserável e cega. Nesse momento, o cineasta ressalta o quanto aquele instantâneo o comove e também o quanto admira Salgado.

De certa forma, dá até para dizer que há algumas conexões óbvias entre Salgado e Wenders. Para começar, a preferência do fotógrafo pelo registro preto e branco encontra ressonância na própria filmografia do cineasta, cujos alguns de seus melhores filmes apresentaram uma opção pela fotografia não colorida (No decorrer do tempo, O Estado das coisas, a primeira metade de Asas do desejo). Além disso, o fotógrafo em seus mais conhecidos álbuns preferiu retratar aqueles que se encontram à margem da sociedade (trabalhadores informais, refugiados de guerra, nômades, povos nativos, órfãos, miseráveis), enquanto Wenders trouxe em boa parte de seus filmes personagens em processo de ruptura com o mundo que os cercam, verdadeiros outsiders (ainda que por razões diversas dos indivíduos presentes nas fotos de Salgado). Essa sintonia entre Wenders e Salgado por vezes se manifesta de forma intensa e encontra achados imagéticos interessantes em O sal da terra. Os momentos em que algumas das principais fotografias de Salgado se fundem com a imagem do seu rosto e mesmo com sua narração têm um efeito sensorial marcante. E em se tratando de um filme que tem a imagem capturada como o principal mote de sua temática, é de se destacar o belo trabalho de enquadramentos e iluminação que captam algumas nuances visuais realmente impressionantes, remetendo ao próprio estilo de Salgado fotografar.

Se em termos imagéticos O sal da terra traz os seus momentos de deslumbre, por outro lado como narrativa cinematográfica acaba sendo frustrante. Isso porque a estrutura do seu roteiro obedece a uma linha burocrática e previsível: apresenta de forma cronológica alguns dos principais fatos da vida de Salgado e traz alguns detalhes relevantes das viagens que fez ao redor do mundo para colher material para os seus álbuns. Ou seja, obedece ao mesmo formato de outra obra que já tinha o fotógrafo como personagem principal, o didático e apenas correto Revelando Sebastião Salgado (2012). É óbvio que as histórias familiares e das andanças de Salgado pelo globo trazem uma forte carga humanista e chegam a serem comoventes em determinadas sequências. É fato também, entretanto, que ao optar por essa formatação Wenders acaba sacrificando bastante da sua marca autoral. Não há a tensão dramática de Nick’s Movie, o cerebralismo de O quarto 666, a criatividade estética de The soul of a man e Pina, a sensibilidade à flor da pele de Buena Vista Social Club. Em O sal da terra os elementos da contradição e do conflito estão ausentes. Nesse sentido, a presença de Juliano Ribeiro Salgado, filho de Sebastião, na codireção acaba não passando incólume. A narrativa, de forma progressiva, vai adquirindo um tom cada vez mais solene, beirando de maneira equivocada uma atmosfera de beatitude, em que Salgado vai se convertendo numa espécie de figura santificada. Há uma cena em que Wenders insinua que filmar o fotógrafo é muito complicado, pois ele tem a autoconsciência de estar sendo enquadrado pela lente do cineasta e se movimenta em cena sabendo do efeito que pode causar, dando a impressão de que o próprio Salgado pode estar conduzindo a narrativa. E é isso que parece acontecer em O sal da terra: o biografado transforma o documentário na sua hagiografia, realçando seus feitos pessoais, sua privilegiada visão de mundo e suas iniciativas sociais (como o parque ecológico criado por ele e sua mulher). Mesmo suas críticas políticas e sociais em relação às mazelas que afligem as pessoas que fotografa, apesar de bem intencionadas e sinceras, acabam soando protocolares diante dessa concepção narrativa destituída de criatividade e vigor. Nesse conjunto de opções estéticas e temáticas, dá para dizer que em O sal da terra se tem um bom vídeo institucional. Só que se limitar a uma eficiente peça publicitária acaba sendo muito pouco quando se tem envolvidos numa produção nomes como Wim Wenders e Sebastião Salgado.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

Um dos melhores filmes desse ano