Junto a Prometheus (2012), O conselheiro do crime (2013) se
configura como uma inesperada guinada na filmografia de Ridley Scott. Por mais
que tenha atingido um alto grau de excelência artística em alguns de seus
filmes anteriores, o diretor britânico sempre foi daqueles adeptos de uma
narrativa clássica, tendo por foco “contar uma história”. Ocorre que Prometheus era uma obra bastante
problemática em termos de roteiro, fruto dos conflitos criativos entre Scott e
os produtores do filme, mas que compensava em termos de narrativa e requinte
visual. O diretor enveredou por um cinema mais sensorial, elaborando atmosferas
inquietantes, sombrias, e fazendo com que a produção mais estivesse para o
terror gótico do que para a ficção científica. Nessa obra mais recente, o
cineasta permanece com tal abordagem formal, só que agora aplicada para o
gênero policial. O resultado é uma das coisas mais esquisita e inquietante a sair
nos cinemas recentemente.
A trama de O
conselheiro do crime é praticamente um fio de história – uma transação de
drogas que dá errado, fazendo com que um advogado almofadinha (Michael
Fassbender), um chefe de crime (Javier Barden) e um intermediário (Brad Pitt)
fiquem marcados para morrer por um cartel mexicano. Só que para rechear o
roteiro Scott contou com um mestre bastante inspirado, o cultuado escritor
Cormac McCarthy. E o cara se esbalda! A concepção de texto foge completamente
dos padrões vigentes para o gênero, beirando genialmente o irreal em alguns
momentos – é como se Shakespeare baixasse no meio de um monte de bandidos
pés-de-chinelo e peruas na fronteira entre os Estados Unidos e o México, dando
um irônico ar trágico e fabular para um ordinário conto policial. O conceito da
banalidade do mal está entranhado nos detalhes do texto. Numa determinada
passagem, um assassino profissional elabora um minucioso plano para decepar um
motoqueiro numa estrada. Poucas seqüências depois, o mesmo assassino morre de
forma nada épica, como se fosse apenas uma casualidade. Os diálogos são
sinuosos – as personagens conversam, filosofam, tergiversam, em falas
carregadas de sutis simbologias. Nesse sentido, situações que parecem aleatórias
e gratuitas aos poucos adquirem outras conotações,
ganhando significados metafóricos fascinantes. As cenas de sexo entre as
personagens de Fassbender e Penelope Cruz, por exemplo, que trazem desenvoltura
e erotismo atípicos para os padrões habituais do cinemão norte-americano,
oferecem uma dimensão humana extraordinária em meio a sordidez e crueldade que
permeiam a trama. A conversa ao telefone entre o advogado e um chefão mexicano
(Ruben Blades), que representa a definitiva condenação do primeiro, é quase
como se fosse um teatro do absurdo: são quase 10 minutos de um longo discurso
sobre as inevitabilidades do destino, em que se sabe desde o início do papo que
o advogado se deu mal, e mesmo assim ele permanece ao telefone ouvindo aquela
ladainha, numa tortura mental de tons delirantes. E a conclusão de O conselheiro do crime é brilhante na
sua coerência com tudo o que foi mostrado até então – o diálogo de tom casual
da traiçoeira Malkina (Cameron Diaz) com um comparsa é anti-climático, mas
também sintetiza com perfeição o espírito cínico de toda a trama.
Se em Prometheus Ridley
Scott se virava com brilhantismo em meio a um roteiro pouco consistente, em O conselheiro do crime ele valoriza
cada palavra da história concebida por McCarthy. A verborragia latente do filme
não o torna “literatura filmada”. Pelo contrário – Scott novamente mostra
atenção especial para a construção de uma atmosfera sombria, o que acaba
gerando um contraste perturbador com os cenários por vezes bastante luminosos
na fronteira árida onde a trama se desenvolve. O tom predominante da narrativa
não é o ostensivo, com o diretor privilegiando silêncios, olhares furtivos,
diálogos circulares (em algumas oportunidades, as personagens parecem falar
sobre tudo, menos sobre o que está acontecendo em cena), tomadas de tom
documental, discretos temas musicais. No meio desse aparente sereno formalismo,
quando a ação e a violência irrompem é de forma econômica e impactante, sem que
Scott apele aos clichês do gênero. Ninguém mata ou morre de forma heróica, com
o diretor registrando tiros e decepamentos com uma secura emocional
impressionante e enfatizando muito mais o lado grotesco, sangrento e algo
ridículo de tais mortes. O conselheiro
do crime também representa um dos trabalhos de Scott em que ele melhor
aproveitou o potencial de seu elenco. Michael Fassbender faz um trabalho de
notável composição dramática (a cena em que sua personagem descobre que a
transação deu errado, percebe que está com os dias contados e começa a chorar é
um primor de desespero e ironia), enquanto Cameron Diaz tem a interpretação de
sua vida ao construir uma figura que varia sem cerimônias entre o sensual, o
vulgar e o perverso.
Admiradores de Ridley Scott podem dizem que ela já tinha
deixado a sua marca no gênero policial com O
gangster (2007), mas O conselheiro do crime representa mais
que uma variação de algo que ele já tinha feito antes. Evidencia, também, um
veterano cineasta que ainda é capaz de se reinventar de forma mais que
convincente e oferecer alguns caminhos e ideias arejados em meio a tantas
repetições de fórmulas e obviedades.
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