segunda-feira, julho 14, 2014

O conselheiro do crime, de Ridley Scott ****



Junto a Prometheus (2012), O conselheiro do crime (2013) se configura como uma inesperada guinada na filmografia de Ridley Scott. Por mais que tenha atingido um alto grau de excelência artística em alguns de seus filmes anteriores, o diretor britânico sempre foi daqueles adeptos de uma narrativa clássica, tendo por foco “contar uma história”. Ocorre que Prometheus era uma obra bastante problemática em termos de roteiro, fruto dos conflitos criativos entre Scott e os produtores do filme, mas que compensava em termos de narrativa e requinte visual. O diretor enveredou por um cinema mais sensorial, elaborando atmosferas inquietantes, sombrias, e fazendo com que a produção mais estivesse para o terror gótico do que para a ficção científica. Nessa obra mais recente, o cineasta permanece com tal abordagem formal, só que agora aplicada para o gênero policial. O resultado é uma das coisas mais esquisita e inquietante a sair nos cinemas recentemente.

A trama de O conselheiro do crime é praticamente um fio de história – uma transação de drogas que dá errado, fazendo com que um advogado almofadinha (Michael Fassbender), um chefe de crime (Javier Barden) e um intermediário (Brad Pitt) fiquem marcados para morrer por um cartel mexicano. Só que para rechear o roteiro Scott contou com um mestre bastante inspirado, o cultuado escritor Cormac McCarthy. E o cara se esbalda! A concepção de texto foge completamente dos padrões vigentes para o gênero, beirando genialmente o irreal em alguns momentos – é como se Shakespeare baixasse no meio de um monte de bandidos pés-de-chinelo e peruas na fronteira entre os Estados Unidos e o México, dando um irônico ar trágico e fabular para um ordinário conto policial. O conceito da banalidade do mal está entranhado nos detalhes do texto. Numa determinada passagem, um assassino profissional elabora um minucioso plano para decepar um motoqueiro numa estrada. Poucas seqüências depois, o mesmo assassino morre de forma nada épica, como se fosse apenas uma casualidade. Os diálogos são sinuosos – as personagens conversam, filosofam, tergiversam, em falas carregadas de sutis simbologias. Nesse sentido, situações que parecem aleatórias e gratuitas aos poucos adquirem outras conotações, ganhando significados metafóricos fascinantes. As cenas de sexo entre as personagens de Fassbender e Penelope Cruz, por exemplo, que trazem desenvoltura e erotismo atípicos para os padrões habituais do cinemão norte-americano, oferecem uma dimensão humana extraordinária em meio a sordidez e crueldade que permeiam a trama. A conversa ao telefone entre o advogado e um chefão mexicano (Ruben Blades), que representa a definitiva condenação do primeiro, é quase como se fosse um teatro do absurdo: são quase 10 minutos de um longo discurso sobre as inevitabilidades do destino, em que se sabe desde o início do papo que o advogado se deu mal, e mesmo assim ele permanece ao telefone ouvindo aquela ladainha, numa tortura mental de tons delirantes. E a conclusão de O conselheiro do crime é brilhante na sua coerência com tudo o que foi mostrado até então – o diálogo de tom casual da traiçoeira Malkina (Cameron Diaz) com um comparsa é anti-climático, mas também sintetiza com perfeição o espírito cínico de toda a trama.

Se em Prometheus Ridley Scott se virava com brilhantismo em meio a um roteiro pouco consistente, em O conselheiro do crime ele valoriza cada palavra da história concebida por McCarthy. A verborragia latente do filme não o torna “literatura filmada”. Pelo contrário – Scott novamente mostra atenção especial para a construção de uma atmosfera sombria, o que acaba gerando um contraste perturbador com os cenários por vezes bastante luminosos na fronteira árida onde a trama se desenvolve. O tom predominante da narrativa não é o ostensivo, com o diretor privilegiando silêncios, olhares furtivos, diálogos circulares (em algumas oportunidades, as personagens parecem falar sobre tudo, menos sobre o que está acontecendo em cena), tomadas de tom documental, discretos temas musicais. No meio desse aparente sereno formalismo, quando a ação e a violência irrompem é de forma econômica e impactante, sem que Scott apele aos clichês do gênero. Ninguém mata ou morre de forma heróica, com o diretor registrando tiros e decepamentos com uma secura emocional impressionante e enfatizando muito mais o lado grotesco, sangrento e algo ridículo de tais mortes. O conselheiro do crime também representa um dos trabalhos de Scott em que ele melhor aproveitou o potencial de seu elenco. Michael Fassbender faz um trabalho de notável composição dramática (a cena em que sua personagem descobre que a transação deu errado, percebe que está com os dias contados e começa a chorar é um primor de desespero e ironia), enquanto Cameron Diaz tem a interpretação de sua vida ao construir uma figura que varia sem cerimônias entre o sensual, o vulgar e o perverso.

Admiradores de Ridley Scott podem dizem que ela já tinha deixado a sua marca no gênero policial com O gangster (2007), mas O conselheiro do crime representa mais que uma variação de algo que ele já tinha feito antes. Evidencia, também, um veterano cineasta que ainda é capaz de se reinventar de forma mais que convincente e oferecer alguns caminhos e ideias arejados em meio a tantas repetições de fórmulas e obviedades.

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