Uma das cenas iniciais de “Sem pena” (2014) é exemplar síntese
da contundente concepção formal-temática do documentário em questão: num
plano-sequência, a câmera retrata infindáveis corredores de um arquivo judiciário
abarrotado de milhares (ou milhões?) de autos processuais, tudo ao som de um
tema instrumental opressivo de John Cage. Em tais imagens, o diretor Eugênio
Puppo já deixa claro que sua visão sobre o aparato estatal legal/repressivo não
é das mais generosas. Mas o discurso afiado do filme não é apenas mais uma
variação da linha denúncia que grassa tanto no cinema quanto na televisão
nacional. O que diferencia a obra de Puppo são opções estéticas bastante
criativas que acentuam ainda mais o impacto sensorial do seu complexo conteúdo.
Quando a produção se foca para os depoimentos de várias esferas envolvidas no
processo punitivo (polícia, apenado, juristas, parentes), são dispensados os
enquadramentos diretos nos entrevistados – ficam somente as vozes, ilustradas
por tomadas envolvendo o cotidiano das prisões ou de cenários de instituições
(tribunais, prédios de faculdades de direito) que seriam responsáveis por uma
justiça que na realidade se revela cada vez mais distorcida. Em outros
momentos, Puppo apenas faz registros visuais que acentuam a melancolia e a
desesperança de uma problemática que parece não ter solução, sensações essas
que ganham uma conotação ainda mais sinistra pelas já aludidas músicas que
beiram a dissonância de John Cage. A partir dessa narrativa singular, “Sem pena”
consegue se expandir para além daquele tema que seria a princípio o seu mote
principal: ao evidenciar a falência e a inutilidade de um sistema legal que não
dá conta de apresentar soluções minimamente dignas para dilemas fáticos que
deveria resolver, o filme quebra noções equivocadas que o senso comum de mídia,
políticos e “opinião pública” tanto gostam de levantar e conclui que tudo isso
acaba sendo o sintoma de uma sociedade tomada por profundas desigualdades
sociais e hipocrisias diversas.
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