Os limites entre a literatura e o cinema são muito tênues em
“Mistérios de Lisboa” (2010). Não dá para dizer que a primeira é simplesmente
adaptada a uma linguagem cinematográfica, pois em vários momentos do filme
sentimos que a própria sonoridade dos diálogos e as narrações possui um texto
carregado típico de um romance. Na verdade, é como se o diretor Raúl Ruiz
fizesse questão de não submeter o texto original a uma adaptação rígida. Isso
explica a longa duração do filme (mais de quatro horas). Mas é aí que reside
uma das forças criativas do filme: a sua narrativa tem um estranho encanto hipnótico,
em que mesmo os exageros românticos do roteiro parecem fazer sentido de forma
incrivelmente coerente. Ruiz estabelece um universo próprio em que os detalhes
da trama até têm lógica realista, mas a encenação obedece a uma coreografia de
falas e ações que pertencem a uma outra esfera de plano narrativo. Diante dessa
abordagem artística, o cineasta encontra o pretexto ideal para que enverede em
um barroquismo estético estonteante, repleto de nuances que exigem forte atenção
do espectador, indo de truques e efeitos visuais de contundente caráter simbólico
até uma direção de fotografia de enquadramentos de grande beleza pictórica. E
por mais que as ousadias formais de Ruiz estejam impressas em várias passagens
de “Mistérios de Lisboa”, a obra está longe de se enquadrar em mero experimento
– a dinâmica da sua edição cria uma tensão impactante, fazendo com que a longa
metragem do filme dê a impressão de até passar sem que se perceba isso.
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