terça-feira, setembro 09, 2014

Bem-vindo a Nova York, de Abel Ferrara ****


Nos letreiros iniciais de “Bem-vindo a Nova York” (2014), há o aviso de que o filme se baseia livremente no caso real do estupro de uma camareira de hotel envolvendo o então diretor-presidente do FMI, Dominique Strauss-Khan, ocorrido em 2011. Além disso, há uma entrevista (falsa ou verdadeira?) com o ator Gerard Depardieu discorrendo sobre a sua predileção por interpretar pessoas as quais não aprecia. Nesse “discurso sobre o método”, o diretor Abel Ferrara já deixa claro que o que importa para ele é muito mais a simbologia desses fatos do que a recriação fidedigna deles. Dessa forma, acaba criando uma espécie de parábola moral para os tempos modernos. A intensa encenação concebida pelo cineasta é excessiva na sua profusão de devassidão e cinismo, mas esse exagero não é gratuito – o vórtice de hedonismo sem fim em que o protagonista Devereaux (Depardieu) se insere possui um caráter metafórico contundente. As longas seqüências de sexo não possuem um caráter erótico. Na visão do filme, as travessuras sexuais de seu personagem principal refletem uma carga de dominação econômica e social de Devereaux sobre aqueles que o cercam, fazendo lembrar a perturbadora conjunção sexo-dominação-morte de “Saló – Os 120 dias de Sodoma” (1975) de Pasolini. Tal submissão se manifesta no sexo pago com prostitutas, nos atos forçados com a camareira e uma jornalista e até mesmo na entrega voluntária de uma jovem e bela estudante de Direito encantada pela aura de poder de Devereaux. Mas aqui não há a solução fácil de uma expiação de pecados a redimir os personagens: mesmo quando preso, Devereaux não demonstra quaisquer traços de arrependimento, e pouco depois seu poder econômico e social sufoca as possibilidades de punição para os seus atos brutais. No fundo, ele sabe que sua conduta é legitimada por uma sociedade que o vê como vencedor.


No registro da perversa saga de Devereaux, Ferrara adota um formalismo admirável no seu rigor e elegância narrativa e que entra em contraste genial com a linha temática da trajetória de excessos do personagem. O cineasta constrói uma estranha e sombria atmosfera que varia entre luxuosos ambientes a meia-luz e a luminosidade asséptica de aeroportos e prisões que parecem refletir tanto o universo à parte de orgias ilimitadas do protagonista quanto o seu inferno pessoal ao sofrer um esboço de alguma punição. E fundamental também nas intenções artísticas da obra é a caracterização monumental de Depardieu. Sua interpretação traz nuances variadas, indo desde o naturalismo tradicional até a toques metalingüísticos com o ator conversando diretamente com o espectador. Seu trabalho corporal e expressivo é impressionante – Devereaux pode ser repugnante nos seus grunhidos animalescos, mas também encantador no seu carisma diabólico. Até a pança proeminente dele acaba funcionando como um recurso dramático marcante!

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