É quase impossível escrever sobre um filme de Quentin
Tarantino sem fazer conexões com outros títulos de sua filmografia. Isso porque
esse conjunto de obras representa um universo próprio, que se une por particulares
regras estéticas e conceituais. Assim, tais produções se ligam, trazem
ramificações e suscitam comparações entre si. Dentro desse ordenamento, pode-se
dizer que “Bastardos Inglórios” (2009) representava uma virada importante na carreira
do diretor. Sem abandonar suas concepções peculiares de cinema, era como se
Tarantino procurasse se voltar para um cinema mais “normal” em termos
narrativos, sem utilizar tanto os recursos de citações e referências (ainda que
elas lá estivessem presentes de forma marcantes). Essa ruptura não marcava uma
forma dele se mostrar mais acessível para o grande público, mas simplesmente a
vontade de enveredar por novos caminhos artísticos.
Diante desse quadro, “Django livre” (2012) é a continuação
natural desse novo caminho de Tarantino. Se em “Bastardos inglórios” ele
enveredou por uma espécie de revitalização do gênero do filme de guerra, nessa
obra mais recente ele traz trama e uma abordagem estética diretamente calcadas
nos faroestes espaguetes, que tiveram o seu auge comercial lá pelos anos 60 e
70 (e que de certa forma sempre foram influentes em algumas das produções de
Tarantino, com destaque para “Kill Bill”). É claro que o resultado final de “Django
livre” não é uma cópia exata dos moldes clássicos estabelecidos por Sergio
Leone e afins. O cineasta norte-americano trabalha com alguns dos elementos
mais característicos dos espaguetes (closes e zoom exagerados em profusão,
temas musicais típicos, interpretações um tanto over de seus atores), mas os
subverte de acordo com seus padrões. Tanto que o filme por várias vezes evoca
os preceitos do blackexpoitation (subgênero já revisitado por Tarantino em “Jackie
Brown”).
Se “Bastardos Inglórios” era pautado por um roteiro lapidado
de forma obsessiva e por um rigor formal de sua narrativa, “Django livre” se
mostra como a produção mais caótica da lavra de Tarantino. Seu texto é mais
frouxo, às vezes até com trechos que poderiam ter sido podados na edição (sério,
mas eu nunca esperava ver tantos momentos contemplativos num filme do cineasta,
principalmente naquelas cavalgadas sob um horizonte crepuscular). Também é a
trama mais linear já vista na sua trajetória, tanto que quase não há daquela
idas e vindas no tempo. Na verdade essas diferenças marcam uma divisão
existencial/artística fascinante: enquanto “Bastardos inglórios” é apolíneo na
sua busca pela concisão e perfeição, “Django livre” é dionisíaco no seu
barroquismo e no seu simples desejo pelo prazer sensorial. Ou seja, esse último
talvez seja o mais irregular dos filmes de Tarantino, mas também é dos seus
mais epifânicos e catárticos, pleno de seqüências de uma verdadeira orgia audiovisual.
Mas talvez a melhor forma de traduzir o que significa uma
obra como “Django livre” é tentar expressar uma sensação muito pessoal – aquela
em que um filme pode causar tantos momentos arrepiantes, tanto pela encenação
preciosista quanto por alguns momentos perturbadores de tensão. Serio: é tão
comum nos sentirmos assim numa sala de cinema nos últimos tempos?
Um comentário:
O cinema inteiro do Shopping Total aplaudiu no final desse filme. É Tarantino em sua melhor forma.
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