O cinema de horror contemporâneo tem duas grandes vertentes
– uma, mais tradicionalista, recicla narrativa e temáticas clássicas do gênero,
enquanto que a outra, mais “moderninha”, usa e abusa daquela estética “câmara
subjetiva”, em que o registro é aparentemente amador para que se dê uma ideia
de maior realismo. De certa forma, a produção brasileira “Quando eu era vivo”
(2012) até se vale de alguns dos preceitos de tais vertentes, mas a via
criativa pela qual envereda é diversa. A trama se vale de elementos recorrentes
na filmografia do terror, evocando segredos de um passado obscuro, personagens
misteriosos, possessão demoníaca, alma penadas, ainda que o roteiro do filme
permaneça de forma constante numa fronteira tênue entre o horror metafísico e o
suspense psicológico. Em algumas seqüências, o diretor Marco Dutra se apropria
do recurso de filmagens caseiras, mas de forma econômica e sem usar como
desculpa para inserir um registro tosco. Mas catalogar a produção em questão na
categoria terror seria impreciso. Por mais que a obra de Dutra tenha momentos
assustadores (e realmente tem), o que ela sugere mais é um drama de tons
fantásticos a tratar sobre as relações familiares e a loucura humana,
carregando bastante no simbolismo. Nesse sentido, a transformação que o apartamento
que serve de cenário para história passa é exemplar – de um asséptico recanto
tipicamente classe média atual para um local mal iluminado repleto de móveis
antigos, enfeites cafonas e imagens religiosas nos moldes de um tradicional lar
católico de meados do século XX. E nisso reside um dos aspectos mais
fascinantes de “Quando eu era vivo”: a obsessão de Júnior (Marat Descartes) em
reconstituir fisicamente o seu passado e descobrir supostas mensagens crípticas
deixadas por sua mãe traz uma rica carga metafórica na busca nostálgica da
inocência perdida e de um amor familiar deteriorado pela busca do pai (Antônio
Fagundes) pelo conforto pequeno-burguês. O roteiro do filme é desconcertante na
maneira sutil com que lida com esse jogo de aparência e com a inversão de
expectativas. Em pequenas nuances narrativas, que vão de estranhas e evocativas
melodias musicais ao aparecimento nada aleatório de objetos corriqueiros, a
trama desconcerta o espectador ao preservar a visão singular do escritor
Lourenço Mutarelli, autor do romance que deu origem ao filme – a de que é mais
humano permanecer unidos na loucura do que desagregados pela suposta
normalidade. E nesse viés, a climática conclusão da obra apenas reforça a
impressão de “Quando eu era vivo” como um dos momentos mais comoventes da
filmografia brasileira recente.
Um comentário:
Já é um dos grandes filmes brasileiros desse ano.
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