Dentro da relação entre cinema e contos de fadas, há uma
tendência na atualidade de boa parte das produções em fazer uma espécie de
revisão contemporânea sobre as narrativas fabulares tradicionais. Dentro desse
conceito, em pretensa sintonia com um olhar mais iconoclasta e pós-moderno,
tais obras dedicariam um viés adulto, sombrio, naturalista ou psicológico/psicanalítico
sobre aquelas velhas histórias que nos são contadas desde a infância. Essa
releitura “madura”, entretanto, na grande maioria dos filmes, só fica nas
intenções, com um resultado final que se mostra muito mais simplório e descartável
do que as histórias originais em que se basearam. Isso fica evidente em
trabalhos como “Alice nos país das maravilhas” (2010), na versão de Tim Burton,
e “Branca de Neve e o caçador” (2012). Em “Cinderela” (2015), a concepção
autoral dispensa esse tom de revisionismo. O diretor Kenneth Branagh investe
numa abordagem tradicional do gênero, com todos os aparentes maniqueísmos e
idealizações românticas que a história da gata borralheira costuma ter. Isso não
quer dizer que a obra não se permita ousadias e mesmo a ter um aguçado
subtexto. A experiência de Branagh em rigorosas adaptações de Shakespeare para
o cinema se manifesta de forma vigorosa (coisa que ele não tinha conseguido
fazer no primeiro “Thor”): a encenação e a montagem oferecem uma notável dinâmica
narrativa, a direção de arte e as trucagens digitais combinam criatividade
visual e bizarrias gráficas memoráveis, a direção de elenco extrai algumas
atuações bastante expressivas, com destaque para a encantadora delicadeza de
Lily James no papel-título e o histrionismo bem dosado de Cate Blanchett
(parece que ela nasceu para fazer a madrasta malvada). Coroando as boas
escolhas estéticas de Branagh, há um roteiro muito bem delineado, que entrelaça
de forma natural aventura e romance com nuances humanistas surpreendentes – ao se
analisar algumas sutilezas da trama, pode-se observar que o foco principal não
está na história de amor de Cinderela e seu príncipe, mas sim na relação de
abnegação e tolerância da personagem principal com o mundo que a cerca. Seguir
o mantra “seja corajosa e gentil” para a protagonista não é apenas uma ordem
moralista. Significa também a possibilidade de sobrevivência e resistência
dentro de um ambiente de opressão. Colocar um dilema existencial complexo como
esse dentro de uma produção infantil de maneira fluente e sutil é um dos
principais méritos de Branagh em “Cinderela”.
Um comentário:
Eu honestamente não tenho muita fé nesta nova adaptação, mas só vi na programação HBO e adorei. É um conto emblemático da Disney e eu acho que eles fizeram um ótimo trabalho com esse filme. O traje de Cinderella é incrível.
Postar um comentário